quinta-feira, 3 de junho de 2010

Sidarta a Govinda

"-No meu corpo e na minha alma fiz a experiência de quanto carecia do pecado, da volúpia, da cobiça de bens materiais, da vaidade, até do mais inútil desespero, para que eu aprendesse a me desapegar, a querer bem ao mundo, a cessar de compará-lo a qualquer outro mundo imaginário que correspondesse aos meus desejos, a algum tipo de perfeição brotado do meu cérebro, para que, deixando esse mundo tal como é, me limitasse a amá-lo e fazer parte dele...

Baixando-se, Sidarta apanhou uma pedra. Enquanto a sopesava na mão, disse displicentemente:

-Isso é uma pedra, mas daqui a algum tempo talvez seja terra, e da terra se transformará numa planta, ou num animal, ou ainda num homem. Em outra época, quem sabe, eu teria dito: 'essa pedra é apenas uma pedra. Não tem nenhum valor. Pertence ao mundo das ilusões materiais. Mas se, perém, no ciclo das metamorfoses ela se converta num humano e adquira espírito, talvez preste certa atenção a ela.' Eis o que, provavelmente, eu teria pensado naqueles tempos. Hoje, porém, raciocino assim: 'esta pedra é pedra, mas é também animal, é Deus, é Buda.' Não lhe tributo reverência ou amor porque ela um dia talvez possa se tornar isso ou aquilo, senão porque é tudo isso, desde sempre e sempre. E precisamente por ser ela uma pedra, por apresentar-se-me como tal, hoje, neste momento, amo-a, e percebo o valor, o significado que existe em qualquer uma das suas veias e cavidades, nos amarelos e nos cinzas da sua coloração, na sua dureza, no som que lhe extraio ao bater nela, na aridez ou na umidade da sua superfície. Há pedras que, ao tato, dão-nos a impressão de tocarmos em sabão ou óleo. Outras são como folhas ou como areia. Cada qual é diferente e profere o Om à sua maneira peculiar. Todas elas são Deus, mas, simultânea e especialmente, são pedras, que possam ser oleosas ou viscosas. Justamente isso me agrada, parece-me maravilhoso, realmente digno de veneração..."


Hermann Hesse