quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Se aqui volto é porque algo me trouxe. Não expresso minhas impressões em verso, prefiro deitá-las à mesa da análise e dissecá-las em prosa. Tenho essa limitação, a do raciocínio telúrico. Mas me pergunto: se acaso espalhasse
a idéia em verso
e pensasse
na forma,
no peso
semântico
da linha,
sem passo,
sem metro,
sem rima,
se eu não
estaria
fazendo
poesia.
Questão pra pensar. Tenho preguiça de versos, e as imagens já as emprego o tempo todo. Herdei da minha mãe esse gosto pela metáfora. Mas eu ia dizendo: se aqui venho é porque algo me trouxe. Você também quer algo, meu velho leitor hipotético. Gosto de conversar com hipóteses. Sim, conversar. Quem disse que não te escuto daqui?

Esta semana estive trocando idéia com o Machado, e ele me força a pensar. O zoom psicológico microrrealista com que descreve os tipos, a capacidade de não dizer já dizendo e a densidade de sentido (muito sentido pra pouca palavra) me servem como modelos, como oposto de mim, como uma realização magna de algo que de certa maneira eu busco faz um tempo. Além do estilo, a matéria de que ele trata me instiga. Hoje, noite de 18 pra 19 de outubro de 2016, vim no ônibus lendo Dom Casmurro, shippando Bentinho e Escobar. O tema central do romance é o ciúme, tema que na minha vida recente tem sido foco de muito do que reflito e padeço. Investigo a raiz do que Bentinho sente e me vejo lá. Mas não era exatamente disso que eu vim falar.

A idéia que aqui me trouxe creio que já a perdi, ou ela pulverizou em outras adjacentes: deixo todas elas aqui. Nenhuma importante. Sempre acabo na metalinguagem, pois a rarefeita frequência com que paro para me dedicar à escrita não-obrigatória faz com que eu sempre reflita sobre o sentido mesmo do "por que e o que escrever aqui", para que eu me convença da pertinência do que estou fazendo; rara vez sigo o embalo do que vem vindo, não chego direto no assunto. Abstraia a margem direita da página: imagine uma longa sequência de palavras avançando numa grande linha única; o sentido é um fio, e o texto é uma linha reta costurada. Uma coisa puxa outra, todas seguindo o caminho aberto pela agulha. Tem me faltado agulha, porque linha tenho.

Como sempre, tenho me impressionado com minha própria mediocridade, em diversos sentidos. Ao mesmo tempo, tenho me impressionado com o tamanho e a falta de fundamento da minha vaidade. Gigante. Quanto mais tomo consciência dela, mais a disfarço no tom do meu discurso. Passei hoje a tarde na minha vó, e as semelhanças de comportamento entre meu irmão de 6 anos e meu vô de 70 me fizeram pensar muito nisso, contrastando-os comigo, que estou no meio do caminho. Início, meio e fim da vida. No que tenho me tornado? Minha mãe e minha irmã representam também duas pontas, mas mais próximas: o que eu era aos 16 e o que eu serei aos 40? Vou fazer 24. As simetrias evidenciam os contrastes.

Cheguei em casa hoje, já bem tarde, e meu irmão dormia na sala, tocava na TV uma das talvez duas músicas que gosto do The Final Cut, último álbum com o Waters. Depois começou alguma do Division Bell, e eu me assustei com a diferença. Várias outras foram tocando, e estão tocando. Como podem ter a mesma autoria dois sons tão diferentes? Os da fase áurea e os da decadência. Qual o fio que permite dizer que há uma unidade entre o magnetismo dos primeiros discos e os clichés toscos dos últimos? A única coisa em comum é o Mason, algumas viradas da bateria, marca sonora da banda. Como os primeiros podem me agradar tanto e os últimos me irritarem tanto? Os primeiros álbuns hoje já não me causam o que causavam antes, mas ainda os sinto com intensidade. Já os últimos me irritam, sim, mas antes me entristecem. Outras músicas toscas que ouço sem querer não me irritam, mas o Gilmour fazendo seus solos tão floydianos (arremedos pálidos da perfeição atingida em Dogs ou Shine On), gemendo ritmos bobos com voz cansada sob uma batida dançante anos 80/90, é uma coisa que me entristece, me envergonha. Não é a música em si, é a corrupção que ela representa. A decadência. Houve princípio, auge e decadência, e eu tenho quase raiva dessa decadência. Pessoas gostam disso. Entendo, mas não me conformo. Estou ouvindo agora, bem triste. Não sei de que álbum é, mas é dos últimos, é horrível. Talvez a última coisa que preste possa ser pinçada no The Final Cut, álbum decadente. A decadência começou no The Wall, álbum grandioso, lindo e tosco. Talvez o problema esteja comigo, que não me deixo levar, não paro para ouvir de alma solta, me nego a sentir o que tem de bom no som, no seu potencial de levar pra longe. Quando mais novo, eu me abria virginalmente à idéia de que estava embarcando em uma trip, concentrava-me nos mínimos detalhes, entregava-me devotadamente, acreditava no poder transcendental daquele som. E viajava, efetivamente. Com os últimos álbuns nunca tive isso. Só percebi o nítido contraste e senti falta do que o som não era. Questão de memória e gosto. Talvez. Mas essa é uma apreciação particularíssima, gosto meu. Muitos concordam comigo, tenho certeza. Mas a verdade estética não me importa. Importa o paralelo que posso traçar entre isso e aspectos da minha vida íntima. Paro por aqui.

domingo, 16 de outubro de 2016

se queres
toda essa parte
minha
sepulta
que só percebes
se me escapa
pois já sei
que nada tenho a oferecer
se queres
esse algo
que te agrada
em mim
que vês quando
desarmo
de alma nua
e toco a beira
do que nunca digo
se vês algo em mim
aproveitável
saiba que já é teu
guarda bem
confio meu torto querer
ao teu zelo fecundo
e te quero também