terça-feira, 14 de dezembro de 2010

do último homem

"Falar-lhes-ei do mais desprezível que existe, do último homem.

E Zaratustra falava assim ao povo:

“É tempo que o homem tenha um objetivo.

É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança.

O seu solo é ainda bastante rico, mas será pobre, e nele já não poderá medrar nenhuma árvore alta.

Ai! aproxima-se o tempo em que o homem já não lançará por sobre o homem a seta do seu ardente desejo e em que as cordas do seu arco já não poderão vibrar.

Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.

Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.

Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará a luz às estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já se não pode desprezar a si mesmo.

Olhai! Eu vos mostro o último homem.

Que vem a ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela? — pergunta o último homem, revirando os olhos.

A terra tornar-se-á então mais pequena, e sobre ela andará aos pulos o último homem, que tudo apouca. A sua raça é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que vive mais tempo.

“Descobrimos a felicidade” — dizem os últimos homens, e piscam os olhos.

Abandonaram as comarcas onde a vida era rigorosa, porque uma pessoa necessita calor. Ainda se quer ao vizinho e se roçam pelo outro, porque uma pessoa necessita calor.

Enfraquecer e desconfiar parece-lhes pecaminoso; anda-se com cautela. Insensato aquele que ainda tropeça com as pedras e com os homens!

Algum veneno uma vez por outra, é coisa que proporciona agradáveis sonhos. E muitos venenos no fim para morrer agradavelmente.

Trabalha-se ainda porque o trabalho é uma distração; mas faz-se de modo que a distração não debilite.

Já uma pessoa se não torna nem pobre nem rica; são duas coisas demasiado difíceis. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? São duas coisas demasiado custosas.

Nenhum pastor, e só um rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: o que pensa de outro modo vai por seu pé para o manicômio.

“Noutro tempo toda a gente era doida” — dizem os perspicazes, e reviram os olhos.

É-se prudente, e está-se a par do que acontece: desta maneira pode-se zombar sem cessar. Questiona-se ainda, mas logo se fazem as pazes; o contrário altera a digestão.

Não falta um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite; mas respeita-se a saúde.

“Descobrimos a felicidade” — dizem os últimos homens — e reviram os olhos”."



Assim falou Zaratustra.