quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

soneto ruim sobre poesia ruim

tenho a vantagem de não vir aqui
na vaidosa e egóica busca do aplauso
temo apenas que esse umbiguismo possa
fazer da falta de critério um claustro

escrever sem que algo esteja pedindo
pra sair é como espremer espinhas
daquelas subcutâneas sem ponta
que inflamam e nunca saem sozinhas

não uso as palavras que não existem
na fala comum dos que me rodeiam
— mas livros velhos também me rodeiam

minha maior vantagem é o desprendimento
da pretensão tosca de ser poeta
— quem treina metro e rima não é poeta

crítica a um hipotético eu futuro

Caro Professor Doutor, não minta (pra si):
o que seria de você sem os seus textos,
sem os livros que leu, sem mil linhas no Lattes,
sem o marco teórico do seu mestrado? 

não me responda, só pense, quieto, sozinho.
esqueça a almofada de aspas que te ampara,
levante-se da sua fofa cama teórica,
fique nu de certezas alheias e pense:

o que te move? Amor à Ciência, à Verdade?
não minta: quem sabe, pode; quem pode, manda.
a pose de ser "autoridade no assunto"
te afaga a vaidade em devaneios secretos.

seu ser é só conceito, seu fazer é verbo —
te desafio a fazer brilhar suas ideias
sem essas pomposas lantejoulas retóricas,
mas só com o pano leve das palavras simples... 

no fundo, toda essa teoria é covardia,
é o medo de encarar a crueza da vida,
é a fraqueza do frouxo que foge do forte,
é a desculpa do lerdo que fica por último. 

em que consiste a essência do que você pensa?
já notou o quanto você é tosco e sem graça?
não chame de profundo o que só é confuso. 
diz "estou acima!", mas de fato está atrás.

roto frêmito

mórbido corvo enverga o cenho estúpido 
cede o dorso ao penoso peso plúmbeo
borbulha e infesta um mefítico lodo
ânsia espessa de fuga espasma o esôfago

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

ciúme

narciso curioso, fuço detalhes,
colonizo intimidades, receio
saudades, conchegos passados dela
lembranças? prazer? amor? outro afeto?
na face arde odienta e invejosa brasa
vi demais! lá vem! outra vez! igual! 

mesmo roteiro, com outros atores:
estrutura triangular persistente
tenaz e crônica estampa mental
memória viva do que nunca vi
triste, involuntária e amarga ficção
de posse, egoísta e ofensivo zelo 

me revira o estômago um nojo emético
que queima, dói (fisicamente) e pesa
mas passa. tá passando. já passou.
basta pensar seriamente no fim
não qualquer fim: a finitude em si:
ou terminaremos ou morreremos 

passou o primeiro amor — hoje ela é mãe
guardo uma caixa com fotos, miudezas,
cartinhas, desenhos, nossa aliança...
me espanto ao lembrar que já senti tanto
confesso: às vezes choro quando vejo
(me acostumo com a morte ao pensar nisso) 

passou o segundo amor — somos amigos
desses que se falam semestralmente
e marcam de se ver, mas nunca dá
foi mais um vazio meu que qualquer coisa
me alegra vê-la feliz numa vida
totalmente diferente da minha 

passou o terceiro amor — ainda sinto
uma saudade amiga e suculenta
que por mim não acabaria jamais
não fui o único nem o melhor
ela voltou a falar com aquele ex
rio do peso que já dei pra isso 

passaram os amores de pele — flora
cultivada com o zelo de um botânico
que tem amor pelo próprio jardim
somente as paredes são testemunha
da riqueza ambígua de formas, cores, 
perfumes e histórias dessa varanda 

a beleza da flor é que ela morre 
(as de plástico não têm tanta graça,
ficam sempre iguais e juntam poeira)
a beleza da vida é que ela passa
— o valor do que há de raro no efêmero —
meus amores eternos já acabaram 

hoje vivo o melhor amor da vida!
é doce e manso, é claro e denso — e cresce
no conforto leal do abraço amigo
a assustadora leveza do instante
em que o amor eclode e se espraia em nós
anula qualquer antes ou depois 

e é só isso que importa!!! só o que existe:
a exata área em que a pele se toca
no preciso instante do abraço — só!
eis tudo o que o amor pode querer ser:
nada além de gestos breves que passam
e viram fantasmas quando queremos

false friends

me escrevi na sua vida
com falsos cognatos
se esgotou o sentido
que um dia a gente fez 

uma dobra na folha
dum livro quase lido
pra marcar um poema
aberto por acaso

agramaticalmente
as frases que falamos
toda a graça que achamos
existem em seu contexto 

falta

sinto que aos poucos vou roendo nosso laço
os nós todos que nos atam
e cada fio fica mais fraco
sinto o frio do espaço que falta no abraço
nosso fundo não se toca
me virar do avesso não adiantou de nada

me resolvi quando decidi ceder de mim
a fração exata do quanto a gente se cabe
e por faltar pra mim um tanto seu
guardei pra mim o que sobra
uns 32% pra ser exato
sou 68% seu 

o resto sente falta  
falta do que não se pode pedir
falta de algo espontâneo 
falta de um jeito que não é esse seu
falta de ser ouvido
talvez só seja a falta de um emprego 

me arde o estômago pensar
no que pensa em dizer
mas sabe que se me falar eu choro
ou sumo pra sempre
e não diz
pois já roí esse laço