quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

ciúme

narciso curioso, fuço detalhes,
colonizo intimidades, receio
saudades, conchegos passados dela
lembranças? prazer? amor? outro afeto?
na face arde odienta e invejosa brasa
vi demais! lá vem! outra vez! igual! 

mesmo roteiro, com outros atores:
estrutura triangular persistente
tenaz e crônica estampa mental
memória viva do que nunca vi
triste, involuntária e amarga ficção
de posse, egoísta e ofensivo zelo 

me revira o estômago um nojo emético
que queima, dói (fisicamente) e pesa
mas passa. tá passando. já passou.
basta pensar seriamente no fim
não qualquer fim: a finitude em si:
ou terminaremos ou morreremos 

passou o primeiro amor — hoje ela é mãe
guardo uma caixa com fotos, miudezas,
cartinhas, desenhos, nossa aliança...
me espanto ao lembrar que já senti tanto
confesso: às vezes choro quando vejo
(me acostumo com a morte ao pensar nisso) 

passou o segundo amor — somos amigos
desses que se falam semestralmente
e marcam de se ver, mas nunca dá
foi mais um vazio meu que qualquer coisa
me alegra vê-la feliz numa vida
totalmente diferente da minha 

passou o terceiro amor — ainda sinto
uma saudade amiga e suculenta
que por mim não acabaria jamais
não fui o único nem o melhor
ela voltou a falar com aquele ex
rio do peso que já dei pra isso 

passaram os amores de pele — flora
cultivada com o zelo de um botânico
que tem amor pelo próprio jardim
somente as paredes são testemunha
da riqueza ambígua de formas, cores, 
perfumes e histórias dessa varanda 

a beleza da flor é que ela morre 
(as de plástico não têm tanta graça,
ficam sempre iguais e juntam poeira)
a beleza da vida é que ela passa
— o valor do que há de raro no efêmero —
meus amores eternos já acabaram 

hoje vivo o melhor amor da vida!
é doce e manso, é claro e denso — e cresce
no conforto leal do abraço amigo
a assustadora leveza do instante
em que o amor eclode e se espraia em nós
anula qualquer antes ou depois 

e é só isso que importa!!! só o que existe:
a exata área em que a pele se toca
no preciso instante do abraço — só!
eis tudo o que o amor pode querer ser:
nada além de gestos breves que passam
e viram fantasmas quando queremos

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